Antes, era só o desespero de encontrar o milho: uma saca, muitos quilos, muitas espigas cobradas o cento, alguma coisa que fosse muito, como sempre foi lá na casa da minha avó. A primeira canjica do ano aperta o interruptor que pisca em vermelho, lembrando que esse é, também, o primeiro São João sem minha avó e, agora, quem faz a canjica sou eu.
Talvez em quantidades mais modestas, apesar da esperança de comprar o milho em quantidades absurdas. Não sei se é da crise climática que estamos falando aqui, mas o fato é que não tem milho pra comprar, nem muito, nem pouco. Consegui 15 espigas hoje. Tudo tão pouquinho, tão minguado, que paguei no pix.
As tradições se acabam. Elas são tradicionais, não eternas.
São as coisas que fazemos sempre, rituais nossos, feitos em família, memórias que a gente vai criando sem nem se dar conta. Muito diferente do que fazem hoje, com as crianças, pra postar no feed dizendo “criando memórias". As minhas memórias foram criadas sem anúncio em rede social. Era o São João em Apuarema, a cidade dos meus avós, que só veio constar no mapa da Bahia quando eu já era adulta demais para não ter as férias de junho e não acompanhar as enormes fogueiras na porta da casa deles.
Primeiro, deixamos de ir para o São João em Apuarema. Depois, tiramos meus avós de lá. Na cidade, você sabe, o milho é pouco, minguado, e só dá pra saber se vai dar canjica ou não depois de chegar em casa e abrir. No interior, a gente sabe quando foi plantado, quem colheu, desde quando está na feira, se tem dias ou semanas, se vai dar bom mingau ou canjica. Se vai ser milho de cozinhar, assar ou virar bolo.
Minha tia Zefinha, rainha da pamonha, que sempre operou o milagre no frio severo do sertão pernambucano, este ano não vai fazer nada. Tá frio demais, ela disse. E eu, de cá, concordei. Tá tudo muito frio mesmo!
No meio do caminho, antes de minha avó, antes da crise climática, do São João sem milho, ficou tia Marta. Minha madrinha. A mais animada! Foi dela que aprendi todas as músicas de forró que sei de cor e arrisco no piano, respeitei uma bota acima dos joelhos e aprendi que Campari é bom e dá pra gente um lugar que nenhuma outra bebida dá: a pessoa que toma Campari é capaz de tudo.
Essa não nos deixou. Está acamada, vítima de um AVC tão severo quanto o deserto frio do sertão de Pernambuco, onde tia Zefinha não cozinha mais. Antes da alta de tia Marta, as paredes do Hospital do Aeroporto, do Hospital Santa Izabel e da Florence ouviram, meio fora de época, mas nunca fora de contexto: “meu pitiguari, voa, vai buscar…”, uma das músicas que, na nossa lógica, anunciavam as festas juninas de minha madrinha com sua bota de cano altíssimo. Os monitores da UTI sempre revelavam alguma resposta ao estímulo.
“A espera mata o coração que quer amar", assim se conclui aquele refrão. De espera, eu não morro. Um coração que aguentou perder o avô nas estreias da pandemia e a avó, algumas horas depois de deixar claro como queria ser enterrada, com que roupa e com que maquiagem, aguenta tudo, até Campari sem tia Marta.
Meu coração viu tia Marta se apagar e se transformar em outra presença. Se há outro forró que diz “eu me criei matando a fome com tareco e mariola”, como sinônimo de resiliência, imagine pra quem se criou na fartura de dona Biza mexendo caldeirões de canjica e separando, sempre, um pires rasinho, onde eu podia comer antes de esperar esfriar, antes da família se aprontar pra festa. Minhas urgências atendidas me ensinaram que, às vezes, é preciso faltar.
Uma canjica pequenininha, só minha.
Frente à falta de milho… Bem na minha vez de fazer canjica.
Perfeita 😍
Meu Pitiguari é a cara do SJ. Mainha toca ela até hoje!!!